segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Crime do Padre Amaro ou Implacável Eça


Passei um fim-de-semana intensivo na companhia de Amaro e da bela Amélia, entrando às escondidas nas casas das devotas senhoras da pequena e provinciana cidade de Leiria dos finais do século XIX.
Nos serões da S. Joaneira, entre bordados e partidas de cartas, na companhia do cónego Dias, da dona Josefa, das senhoras Gansosos e de um enfadonho e distante João Eduardo, ouvia Ameliazinha entoar o Adeus, sob o olhar embevecido do padre Amaro :

Ai! Adeus! Acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!...


Como uma espia com medo de ser descoberta, assisti a esses tão secretos encontros na casa do sineiro nos quais, sob o pretexto da educação devota da sua filha paralítica, Amélia e Amaro se entregavam às concupiscências da carne num amor desde o início condenado ao fracasso.

Ela atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir nele o “ouro de Santo Ambrósio”, o “embaixador de Deus”, tudo o que na terra havia de mais alto e mais nobre, o ser que excede em graça os arcanjos!
Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influência da sua voz – que a faziam crer na promessa que ele lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ela o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomá-la pela mão para a acompanhar e desfazer todas as dúvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do Céu; e que na sua sepultura, como sucedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos abraços santos de um padre…
Isso encantava-a. Àquela ideia da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, num antegosto de felicidades místicas, com suspirinhos de gozo.

Amélia não sabia ainda de que massa era feito esse tal Amaro, violento, maquiavélico, tão cobarde e egoísta que não chega sequer a pôr a hipótese de abandonar o sacerdócio - para o qual havia sido empurrado sem vocação - em favor de esse amor pungente (nem mesmo quando Amélia lhe confessa que vai ter um filho seu).

O final não conto, embora muitos já o saibam.

Embalada por este ambiente eclesiástico descrito sob a forma de uma magistral crítica ao clero e à sociedade de época, resolvi continuar a temática vendo o filme com o mesmo nome, realizado por Carlos Carrera, inspirado nesta obra-prima do Eça.
Não se me podia ter ocorrido pior ideia.
O filme passa-se na cidade de Los Reyes, México, e pretende ser uma abordagem contemporânea à narrativa queirosiana (devo dizer que a novela, publicada em 1875, se me afigurou como totalmente contemporânea, podendo ter lugar nos nossos dias, num qualquer lugar perdido do Portugal profundo). Como se não bastasse a introdução de temas como guerrilhas, narcotráfico e abortos ilegais, espetam-nos como Amaro com Gael García Bernal, que de padre tem mesmo muito pouco e definitivamente não conseguiu dar forma a tão complexa personagem. (a Gael queremo-lo com poucos banhos, cabelo semi-oleoso e camisa suada, como em "Amores Perros" ou "Y tu mama también")
Se o romance entre os protagonistas é enfadonho e desinteressante, as dúvidas, contradições, considerações éticas e conturbadas decisões das personagens são praticamente ignoradas, na pressa de acelerar o guião e na fraca interpretação dos actores principais.

A quem só viu o filme, aconselho vivamente a leitura do romance, preferencialmente quando tiverem algum tempo disponível porque, aviso já, pode ser uma daquelas maratonas de leitura compulsiva que não conseguimos abandonar antes de chegar ao final.

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