sexta-feira, 27 de junho de 2008

Poção do amor


Foi numa quente tarde de Agosto de um ano qualquer, no auge de uma adolescência plena, que é como quem diz, pesadamente depressiva, a rebentar de dúvidas e com uma enorme determinação em tentar mudar o mundo, que tive coragem de entrar naquele sítio pela primeira vez.
Tinha ainda o corpo pegajoso de sal e os cabelos emaranhados numa espécie de ninho de ave, pronto para acalentar os ovos acabados de pôr.
Era um qualquer dia de Agosto em que a pele exibia esse maravilhoso tom dourado que denuncia que as práticas balneares são levadas com afinco e persistência de uma forma regular, se não mesmo diária.
Era um daqueles dias em que ainda que estivesse à sombra continuava a sentir a dureza do sol a entranhar-se-me na pele e a misturar-se com o sal do corpo, transpirando peculiares odores e reactivando o remoinho hormonal próprio daquela idade.
A época em que a bicicleta era o único meio de transporte que podiamos manipular com legitimidade, se pensarmos que o estender o dedo para apanhar boleia sempre foi considerado um acto ilícito, o que o tornava, claro está, muito mais apetecível.

Antes desse dia já me tinha detido outras vezes em frente daquele portal onde, através de uma vitrine amarelada e coberta de pó, desfilavam todo o tipo de estranhos objectos que me dedicava a observar demoradamente antes do regresso casa. Recordo que o que mais despertava a minha curiosidade era toda a gama de objectos esotéricos, as poções de bruxaria, as receitas de alquimia, os livros de macumba e as referências a São Cipriano (livro esse que acabei por comprar anos mais tarde num quiosque debaixo do Arco da Almedina, em Coimbra). Entre estas preciosidades também se podiam comprar esferográficas coloridas com cheiro, isqueiros, blocos de notas e, provavelmente, talões da lotaria.
Apesar da loja não ter mais do que três metros quadrados, era um espaço totalmente fechado, hermético e inviolável, tendo que tocar-se à campainha para que o funcionário abrisse uma janelinha no balcão que permitia pelo menos um primeiro contacto visual.

Há já muito tempo que me fixava repetidamente no mesmo frasco, de cor avermelhada e com um rótulo envelhecido que dizia poção do amor. Pensava que se aquela mistura alquímica realmente surtisse os efeitos desejados, teríamos metade dos problemas do mundo resolvidos, inclusivamente os meus.
Foi assim que, naquele fim-de-tarde de um Agosto qualquer, enchi os pulmões de ar, como preparando-me para iniciar um acto solene e, enfrentando a vergonha crónica da minha adolescência, toquei à campainha daquele misterioso sítio e perguntei como funcionava a tal poção do amor.
Depois de uma explicação breve de que já não consigo recordar-me, olhou para mim do alto dos seus sessenta e pico anos, do lado de lá da janelinha do balcão e, esboçando um terno sorriso, disse-me: "Menina, amores de verão enterram-se na areia!"
Entre a raiva e o alívio, respndi com um sorriso igual, dei meia volta e voltei para casa.

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