
Sempre pensei que os palhaços eram uma espécie de seres imortais, a quem tinha sido concedida a gigante tarefa de agarrar o comum dos mortais à vida, ensinando-lhe a contemplação das coisas simples e o deleite no seu estado puro.
Houve até um tempo em que também eu quis ser palhaço, talvez por essa odiosa relação que tenho com a morte ou com as coisas sérias que, a bem dizer, são praticamente a mesma coisa.
Lembro-me muitas vezes dos meus passeios de fim-de-tarde pelas ramblas de Barcelona quando, para terminar o dia em cheio, ia em busca do meu palhaço favorito, um mimo enternecedor que tinha um apito invisível no céu da boca que emitia ruidos bastante peculiares. O meu mimo ia mudando de sítio com alguma frequência, pelo que, para descobrir o seu paradeiro, seguia o som do dito apito até o encontrar.
Então procurava um sítio privilegiado, onde pudesse ver cada um dos seus movimentos, admirar cada uma das suas deliciosas expressões faciais para não perder pitada.
Ficava sempre algum tempo, olhos esgazeados, rosto boquiaberto, até absorver um pouco daquela energia mágica e poder regressar a casa com a sensação de um dia ganho.
Um certo fim-de-tarde, era já de noite, em épocas natalícias, estava eu, olhos esgazeados, rosto boquiaberto, paralizada a olhar para o meu mimo favorito, quando reparo que me faz um sinal para que me aproxime.
A minha cara transformou-se de repente num arco-íris de cores vivas e o coração disparou como se tivesse acabado de correr os 1000 metros. Mas ao mesmo tempo inundava-me uma sensação de orgulho e diria até de uma certa altivez: de entre todas aquelas pessoas que o rodeavam eu tinha sido A escolhida.
O que se passou então não será revelado.
Guardo-o num cofre rosa com cheiro a flores fechado à chave, como um segredo antigo.
Sei que nessa noite cheguei a casa radiante, quase eufórica, com o mundo na barriga.
Trazia em cada poro a felicidade em estado puro e a certeza de que, depois daquele momento, já poderia morrer.
Nestes dias em que se chora a morte de Marcel Marceau, eu só consigo pensar no meu mimo das ramblas, de quem talvez nunca mais tenha notícias.
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